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Vinho acorda para a contrafação
Em 2012, quando se soube que a China consumira mais de 1,5 mil milhões de garrafas, poucos perceberam a verdadeira extensão do problema. Mesmo entre os patrões da indústria, ou especialmente entre estes, o vinho celebrou a entrada em cena de um cliente capaz de catapultar o consumo. Dos originais e das cópias…
Os mais informados conhecem o efeito que o interesse chinês teve, por exemplo, na cotação dos vinhos de Bordéus. Para se ter uma ideia, o balanço de um hotel de 5 estrelas em Dongguan, laboriosa cidade no delta do rio das Pérolas (relativamente próximo de Macau), mostra vendas anuais de 40 mil garrafas (quarenta mil!!) de Château Lafite Rothschild, um dos 5 Premiers Crus bordaleses. Sublinhe-se, um único hotel, numa cidade que nem é capital de província. Quando a produção anual de Lafite Rothschild não atinge 200 mil garrafas, das quais menos de 50 mil se destinam ao mercado chinês. Resumindo a discrepância, só naquela cidade do Sul da China, o volume de vendas de Lafite Rothschild multiplica 5 vezes o total das importações… Ou seja, estima-se que das garrafas em circulação, apenas uma ou duas em cada dez sejam genuínas.
Ainda assim, que tem isso a ver connosco? Remetemos para a recente notícia da apreensão de falsas garrafas de Barca Velha e Pera Manca. Sabe-se que a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica efetuou a apreensão no Martim Moniz, em Lisboa. Aliás, o detalhe que levou os inspetores da ASAE ao epicentro da burla, foi precisamente a presença de rótulos daquele calibre numa loja da “chinatown” lisboeta.
Mas, rebobinemos o filme, de volta à ideia inicial, sobre a contrafação. Naquele mesmo ano (2012), o FBI detinha Rudy Kurniawan, um indonésio que em poucos anos ascendeu ao topo do mercado americano de vinhos caros. Chegado à América em 2000, em 2006 era notícia na imprensa especializada com um encaixe de 30 milhões de euros num par de leilões, de supostas raridades vínicas. A polícia encontrou na cozinha de Kurniawan, uma verdadeira unidade de falsificação: garrafas, cápsulas, rótulos, etc.
A detenção e posterior condenação talvez não passasse de notícia pontual, mexerico de milionários, se uma das estrelas da acusação não fosse o magnata da energia Bill Koch. Conhecido por ter desmascarado uma das maiores fraudes do vinho deste lado do Atlântico (protagonizada pelo falso “colecionador” alemão Hardy Rodenstock), Koch assumira uma cruzada contra o fechado círculo dos vinhos caros. Alma litigiosa, curtido por anos de querelas judiciais pela herança familiar, não olhava a despesas para atingir os fins. Nos anos 90, enterrou dezenas de milhões de dólares até conseguir vencer a Copa América, em vela. Para desmascarar Rodenstock, o obstinado bilionário contratou uma equipa de agentes do FBI e custeou uma dispendiosa investigação internacional. Desta vez, não ia ser diferente. E com Bill Koch no processo, o caso saltou das revistas de vinho para a imprensa generalista.
Da CBS ao New York Times, Kurniawan foi apontado como o Bernie Madoff do vinho. A notícia estilhaçou o habitual manto de silêncio que encobria as manchas da indústria. A facilidade com que aquele “Dr Conti” (assim conhecido pelo seu nariz para o famoso rótulo da Borgonha) ludibriara produtores, comerciantes e críticos de renome, significou a perda da inocência do mercado.
Se outro mérito não teve o caso, de repente todos começaram a falar. A contrafação tornou-se tema recorrente na cena internacional, abordada sem rodeios por imprensa, simpósios e feiras do vinho. E não apenas no topo da pirâmide. Pelo contrário, todos percebiam que o caso Kurniawan era a ponta solta de um problema mais vasto. O abrangente e poderoso eBay redobrou as precauções anti-fraude, após a condenação de um anunciante que revendia falsas garrafas de Mouton Rothschild, adquiridas na China. Multiplicaram-se as aplicações, códigos e outras propostas para garantir a autenticidade dos rótulos. O jornal francês Sud Ouest, sediado em Bordéus, publica a chocante estimativa de que 20 por cento do vinho no mercado internacional seria de origem fraudulenta.
Ainda que inflacionado, o número saía de fonte conhecedora, identificando os tipos de contrafação com que o vinho se debate, para além dos mencionados rótulos de leilão: falsificações “Premium”, a partir da cópia ou adulteração de marcas de renome (é nesta categoria que se inserem as falsas garrafas de Barca Velha e Pera Manca, ou adulterações mais grosseiras como a Benfolds, versão chinesa da Penfolds); e, na base da pirâmide, vinho a granel falsamente rotulado com uma denominação, para atingir preços mais elevados.
São estas duas categorias que fazem da contrafação um problema global e foram elas que levaram o mundo do vinho a olhar para a Ásia, em particular para a China. Uma cultura onde a contrafação não só é aceite como abraçada pela sociedade. Na verdade, quase lisonjeada. E se marcas como Louis Vuitton ou Cartier há muito lidam com essa realidade, a questão é que o vinho surge como um novo alvo, fácil e apetecível, para os contrafatores. Deixou de ser uma estranha bebida ocidental, para ser adulado por um número cada vez maior de chineses como alternativa saudável ao “baijiu”. A classe alta chinesa, sob constante escrutínio das massas, elevou aqueles rótulos intraduzíveis a um símbolo de “status” e bom gosto. Para dar um exemplo, num passeio de iate pela costa do Algarve, numa hora, meia dúzia de investidores chineses esgotaram o stock de Champagne Cristal existente a bordo (12 garrafas!). Com evidente satisfação, pese o preço. Ou, por isso mesmo… A ponto de pensarmos que a satisfação seria idêntica, fosse qual fosse o conteúdo das garrafas.
No terreno, essa curiosidade e atração pelo vinho são traduzidas pelo último relatório trimestral do Gabinete do Comércio e Indústria da Província de Guangdong: nas revistas efetuadas no mercado provincial, apenas 53% dos vinhos comprados e vendidos passaram a inspeção. Já este ano, a televisão pública chinesa (CCTV), num dos seus programas de maior audiência, expôs uma fábrica de contrafação em Changli, na província de Hebei. Ali se misturavam aditivos alcoólicos, corantes e fragrâncias várias, mistela etiquetada como “vinho”. Na maioria dos casos, nem rasto de uvas. Especializado na contrafação de rótulos domésticos, o fabricante confessava a incapacidade para satisfazer tanta encomenda. Uma reportagem que chocou os verdadeiros apreciadores chineses.
Quanto a rótulos importados, há duas formas conhecidas de contrafação. A primeira e aquela que atinge os nomes mais sonantes da viticultura europeia, passa pela trasfega de vinhos novos para garrafas velhas. O bordalês Lafite Rothschild de 1982 é um alvo recorrente deste truque, dado o preço que atinge. No mercado chinês, a garrafa de Lafite 82 vale, em média, 100 mil Yuans (RMB), quase 15 mil euros. Em qualquer motor de busca local, encontram-se garrafas vazias daquele vinho por 3 ou 4 mil Yuans. Sim, também há um mercado para garrafas originais, vazias. Os contrafatores enchem-nas depois com um bom vinho bordalês, mas bastante mais barato (até 20 ou 30 mil Yuans, entre 3 a 4 mil euros) e vendem-nas com um lucro de 300 ou 400%. O facto das garrafas serem genuínas e o vinho de qualidade, muitas vezes da mesma denominação e aroma similar, dificulta sobremaneira a deteção da fraude.
Outra forma, mais corrente, de contrafação dos Lafites deste mundo é a venda de marcas parecidas, pelo menos aos olhos do consumidor local: "Legende Lafite" ou "Roche Lafite". Pouco importa quão ridículo nos pareça, como o “Margaux” da imagem (apreendido em Hong Kong), desde que soe idêntico ao original… Um caso clássico e que ainda aguarda resolução em tribunal, é o já mencionado Benfolds. Os contrafatores registaram como marca as melhores traduções chinesas para Penfolds e quando a adega australiana chegou à China, tinha o nome tomado! Sem mencionar o vinho importado a granel, também ele suscetível de fraude. A gama de vinho a 1 ou 2 euros o litro, chega às prateleiras chinesas 10 vezes mais caro. Tentador para qualquer comerciante local, engarrafá-lo por lá e vender o seu vinho “importado”.
Tudo somado, e pese o silêncio quase absoluto entre nós, no último ano foi em crescendo a preocupação da imprensa especializada europeia com a espiral chinesa. Blogs, sites e críticos de vinho tão conhecidos como a britânica Jancis Robinson, divulgaram números e artigos preocupantes. Por exemplo, uma série de 5 artigos assinados por Nick Bartman, um advogado que há 25 anos investiga e combate a contrafação na China, com uma equipa de infiltrados no submundo das falsificações. Atualmente ao serviço de grandes adegas europeias, o seu testemunho é esclarecedor sobre a dimensão da armadilha asiática. E, por tabela, da contrafação à escala global.