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Contrafação II: a arma ideal

por Filipe Silva em

Não, não é um detetive privado, tão pouco um investigador ao estilo de séries de ação, envolvido em movimentadas perseguições. Embora o seu trabalho tenha pontos em comum... Nick Bartman é um pacato advogado de direitos de propriedade industrial. Cabelo grisalho e casaco de bombazine, o seu aspeto descontraído em nada o distingue do vulgar cidadão ocidental. Mas, há 25 anos que ele e a sua equipa de operacionais percorrem os meandros das cidades chinesas e respetivas cinturas industriais, visitando fábricas e armazéns onde se apresentam como negociantes do ramo.

Durante esses anos, desde as carteiras Louis Vuitton às camisas Pierre Cardin e adereços Cartier, o advogado “visitou” e trabalhou praticamente todos os setores da indústria do luxo. Perdeu a conta às diferentes identificações e nacionalidades que assumiu, incluindo falsos websites que criou, nessa cruzada para conquistar a confiança de negociantes fraudulentos. Desde 2009, a pedido de alguma grande adega de Bordéus virou a sua atenção para o vinho. Provou a primeira garrafa falsa na feira de Hong Kong e desde então acumulou uma “garrafeira” de rótulos falsos.“Não temos a contabilidade dos prejuízos que provocamos aos falsificadores de vinho mas diria, numa estimativa conservadora, pelo menos uns 300 milhões de dólares” atira Bartman, entrevistado pela americana Public Radio International (PRI).

Os clientes contratam-no para descobrir a origem das falsificações e o seu trabalho resulta em ações judiciais contra indivíduos e empresas concretas. Mas permite também a Nick Bartman ter uma ideia do que a indústria devia fazer para se proteger. Ainda que isso significasse menos trabalho para o seu escritório. Apesar da profusão de aplicações e truques que os produtores criaram nos últimos anos, Bartman argumenta que não resolvem o problema a prazo. “Hologramas e códigos QR (códigos de barras bidimensionais) são demasiado fáceis de copiar” afirma. “Os chineses falsificam todo o tipo de aplicações que existem, de preço acessível para a indústria”.

Em vez da artilharia informática e eletrónica que é vendida aos agentes económicos, o advogado defende que a solução mais efetiva já existe e está no fundo da garrafa. Se olhar para a base de uma garrafa de vinho, ou a virar ao contrário, verá pequenos sinais, números e uma estranha sequência de pontos, gravados em relevo no vidro. Em caso de problemas com a garrafa, os produtores precisam de ser capazes de determinar de que fábrica ou linha de engarrafamento de forma a poderem decidir uma eventual recolha. Esses números e sinais identificam o produtor, fábrica, região, país, molde utilizado, quantidade de vinho na garrafa e a distância entre o topo do gargalo e o topo do vinho na garrafa. Mas, mais o importante de tudo, explica Bartman, é o código de pontos que parece quase Braille. “Há cerca de 13 pontos que podem ser gravados na garrafa para gerar um código; a combinação da quantidade de pontos, a sua posição e espaçamento, podem variar”, conclui.

O código de pontos dá ao fabricante informação identificativa da garrafa, que é armazenada em computador para eventual rastreio. Se houvesse um sistema de registo de que vinho leva cada garrafa, a combinação de sinais, números e pontos, sempre variável, associada à dificuldade de copiar a qualidade e cor do vidro, tornaria o conjunto garrafa, vinho e marca uma espécie de alvo móvel, impossível de reter na mira dos falsificadores.”Tornaria a missão dos falsificadores tão difícil, praticamente impossível, que eles passariam a outro alvo”, explica Bartman. “O controlo da contrafação é um jogo mental com os tipos maus”.

Para essa ideia funcionar, os fabricantes de garrafas teriam de partilhar com os seus clientes detalhes do código de pontos e outros sinais para cada linha de engarrafamento. Na adega, o produtor registaria a informação para associar cada lote de garrafas ao vinho e rótulo em causa. Informação que seria armazenada numa base de dados e, portanto, passível de ser consultada em qualquer altura. Inclusive, décadas depois. Para completar o tal jogo mental, Bartman sugere mesmo que a rotulagem inclua o aviso tipo “Garrafa com código de pontos rastreável.” Não só atuaria como dissuasor de fraudes, mas daria a toda a cadeia de distribuição uma forma de comprovar a autenticidade. Se alguém quisesse verificar, tudo o que teria de fazer era fotografar os pontos no fundo da garrafa e enviar um e-mail ao engarrafador. Se não correspondesse ao original, soaria de imediato o alarme.


Para comprovar esta teoria, o advogado falou com fabricantes de garrafas para saber se era viável a fábrica providenciar a informação que a adega ou engarrafador necessitam. A francesa Saint Gobain, multinacional líder no fabrico de garrafas de vinho, confirmou que há muito utiliza os códigos de pontos para controlo interno, revelando que pode fazer séries de 250 mil garrafas, todas rastreáveis a uma linha de produção específica através de um código único.

Um número perfeitamente compatível com as quantidades que o mercado de vinho lida em termos de exportações. Ainda assim, o que torna esta ideia diferente das técnicas que os falsificadores conseguem copiar? Basicamente, o custo e complexidade do fabrico de garrafas. Os falsificadores teriam de convencer um fabricante a copiar um lote de garrafas. O que tornaria a missão muito mais difícil, para não dizer impossível. O custo de replicar um molde seria proibitivo, para além da multiplicação de determinado molde, inundando o mercado de garrafas idênticas, levantar óbvias suspeitas.

Isto num mercado do vidro dominado por companhias gigantes, quase todas elas cotadas em bolsa e qualquer delas com muito a perder. Inclusive na China, caso aceitassem encomendas para copiar moldes da concorrência. “Para um falsificador de vinhos executar o crime perfeito, teria de encontrar um fabricante de garrafas disposto a falsificar uma garrafa da concorrência”, conclui Bartman.

Mesmo no reino da contrafação –na China - os relativamente poucos fabricantes de garrafas são grandes empresas, organizações complexas, não simples negócios de ocasião dispostos a desmontar a tenda ao primeiro sinal de problemas. É uma área que envolve maquinaria extremamente dispendiosa, estruturas administrativas e uma vasta força de trabalho, onde em caso de infração, haveria decerto gente disposta a denunciá-lo (fenómeno aliás bastante comum num país que explora e maltrata a sua mão-de-obra…). Qualquer fabricante que considerasse uma encomenda do género, pensaria muito e bem antes de se meter nisso, sobretudo tendo em conta que as quantidades, e por tabela o eventual lucro, seriam decerto migalhas no cômputo do total da produção. Decerto, não compensava o risco.

Mas mesmo que, por indecifráveis motivos, o falsificador encontrasse um fabricante disposto a alinhar, este iria sempre exigir ao engarrafador uma encomenda em quantidade suficiente para diversos códigos de pontos. Dito de outra forma, o fabricante sabe perfeitamente que se fabricar apenas um tipo de garrafa, com um único código padrão, um número desproporcionado de garrafas iguais no mercado acabaria, mais cedo que tarde, por atrair a atenção e levantar suspeitas. Ora, a produção de vários moldes, elevaria exponencialmente os custos para os falsificadores.

Isto para além de elementos técnicos, como o próprio molde em si: qualquer vidreiro pode explicar porque é virtualmente impossível uma reprodução exata, com os sinais e pontos exatamente iguais ao original. O mesmo para o cocktail de materiais, a combinação de matérias primas, para uma reprodução exata da cor da garrafa original.

Claro está, Nick Bartman admite que a sua proposta encerra custos para a indústria do vinho, mas considerando a generalizada contrafação a que tem assistido na China, garante que vale bem o preço a pagar. É o preço das vendas e reputação no gigantesco mercado asiático. “Se bem conheço a China, é um custo inevitável, que a indústria terá de engolir!”

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