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Guia miguelín?

por Filipe Silva em

André e Edouard MICHELIN, fundadores do grupo com o mesmo nome, estariam longe de imaginar que o guia, idealizado em 1900 para o mercado francês, se convertesse no que é hoje: uma referência mundial da gastronomia, onde cada edição é rodeada de expectativa idêntica à dos Óscares para o sector cinematográfico. Se a máxima aspiração de um ator é ganhar a estatueta dourada; no caso dos Chefs, o sonho são as estrelas do citado guia.

O pequeno auxiliar dos automobilistas gauleses tornou-se a Bíblia dos restaurantes, editada numa vintena de países e consultada por milhões de consumidores. Mas atenção, a geografia não mudou e para um francês, seja ele apreciador ou crítico Michelin, as cozinhas ibéricas mais próximas continuam a ser as das regiões contíguas aos Pirinéus. Para quem deixa o hexágono, é tão mais fácil e natural dar um “salto” à Costa Brava (Catalunha) ou ao País Basco, como para um portuense conhecer as melhores mesas de vieiras, nos arredores de Vigo, ou um Algarvio recitar boas tapas andaluzas.  Quem conhece as zonas em causa, por exemplo a auto-estrada Barcelona-Perpignan pode imaginar o passeio domingueiro… 

Traduzindo essa proximidade geográfica para a realidade económica atual e o Guia, com a sua edição “Encarnada” (para toda a Península) sediada na vizinha Espanha, é fácil perceber alguns desequilíbrios criados ao longo dos anos. Criados e, na maioria das vezes, acentuados com o tempo. A atenção da crítica e a atribuição de distinções gera o inevitável ciclo virtuoso (ou vicioso…), isto é, a fama aumenta a procura, que por sua vez incentiva mais e melhor oferta, etc…  Tal como o inverso, para quem fica longe dos holofotes ou é vítima deles.

Isto, porque, tomando o todo espanhol e comparando com guias “Encarnados” de outras geografias, verifica-se que Espanha até tem razões de queixa dos franceses. Para não ir mais longe, por exemplo, Itália conta 328(!) restaurantes estrelados: 8 de três estrelas, 40 de duas estrelas, 280 de uma estrela! No total, quase o dobro das estrelas atribuídas ao país vizinho. O que é tanto mais notório quanto se trata de países bastante idênticos, quer em população e superfície, como em fatores culturais, tipo de dieta, etc.

Retomando o raciocínio, resulta interessante observar a distribuição das ambicionadas estrelas, a partir da proximidade geográfica com o país natal do Guia. Começando pelas ditas cozinhas excecionais, que justificam a viagem, temos logo às portas de Girona aquele que a revista “Restaurant” considera o melhor do mundo, o Celler de Can Roca. Sem sair da Catalunha, o 3 estrelas de Barcelona, o Sant Pau (em Sant Pol del Mar) de Carmen Ruscalleda. A mesma via mediterrânea, proveniente de França, encontra mais à frente o restaurante Quique Dacosta, um três estrelas tão vanguardista como piscatório.

Passando os Pirinéus pelo Norte, encontrámos na província de Guipúzcoa, talvez o trio mais famoso da cozinha espanhola: o Arzak, o Akelarre de Pedro Subijana e o Martin Berasategui, do Chef com o mesmo nome (espanhol que acumula mais estrelas, 7).Menos conhecido é outro templo gastronómico basco, o Azurmendi, do Chef Eneko Atxa.

Ou seja, se entre as 6 comunidades autónomas espanholas com maior número de estrelas (ver mapa), a Catalunha lidera em termos absolutos, ninguém poderá negar a primazia basca na Alta Cozinha. Para mais considerando uma população (2,2 milhões de habitantes) inferior à da grande Lisboa contra os mais de 7 milhões de catalães. Não por acaso, ambas as regiões no raio de autonomia dos circunspectos inspetores do Guia, encarregados de promover a faceta excursionista do automóvel.

 Convém lembrar que os primeiros manuais eram oferecidos na compra de pneus Michelin, assim a modos do calendário Pirelli, pendurado pelos mecânicos nas paredes das oficinas, embora nestes as curvas não sejam as da estrada. O Guia não se publicou em tempo de guerra (1940 a 1944) e o de 1945 é um documento histórico, mostrando uma França destruída, mas ansiosa por esquecer e voltar a viver. É nesse contexto que se insere o que atrás dissemos, somando-lhe a necessidade de 4 visitas para atribuir uma estrela e 10 viagens a um restaurante para conceder a segunda. Na prática, estas coisas têm o seu peso.  Senão, como explicar que na 3ª cidade europeia, se coma muito pior que naquelas regiões autónomas? Sim, o DiverXO, de David Munoz, é o único que justifica a viagem à capital espanhola!

Se tudo isto tem um fundo de verdade, melhor se percebe a posição portuguesa. Portugal, confinado a um total de 17 estrelas (na relação per capita, muito abaixo das mais "pobres" comunidades espanholas) é prejudicado duas vezes: estamos incluídos no guia espanhol,  ou seja, comemos pela medida que os franceses aplicam à cozinha espanhola; como se não bastasse, pior ainda, o nosso guia é feito em Espanha e por espanhóis. O mesmo é dizer, o desconhecimento e a distância funcionam em relação a nós tal qual funcionaram com os franceses em relação a “nuestros hermanos”. Dito de outra forma, hoje, o crítico proveniente de Madrid muito provavelmente desembarca em Lisboa, Porto ou Algarve e o resto... é paisagem.

É a esta ordem de fatores que devemos atribuir algum prejuízo, muito mais do que à ignorância dos críticos ou até a fantasmas que não existem. Verdade seja dita, mil vezes o Guia Michelin, com os seus inspetores ainda secretos e, sobretudo, sem patrocinadores a quem satisfazer, do que listagens patrocinadas pela indústria, vide o top 50 da revista “Restaurant” (porta-voz das tecnologias culinárias). Diz-vos quem já fez guias patrocinados por multinacionais, com interesse no negócio.

Para que se saiba, os inspetores Michelin têm formação numa escola de hotelaria e um mínimo de 5 anos de experiência profissional. Anualmente, percorrem cerca de 30 mil quilómetros, apreciam 250 refeições e dormem em mais de 160 hotéis. Sempre sob a capa do anonimato, como qualquer cliente. Muito mais criticável, embora quase incontornável, afigura-se a diferença de critérios, por exemplo, na dita cozinha tradicional. O mesmo Guia que eleva o exotismo japonês, restaurantes tradicionais que não saem de receitas milenárias, recusa-os na Europa. Aplicado à nossa praça, esse critério exclui imensas casas de boa comida, como um Solar dos Presuntos.

Outra história, é a inflação de preços associada à atribuição de estrelas. Mas aí, como no resto, temos sempre uma opção quiçá mais prática e acessível ao comum dos mortais: os Bib Gourmand, da… Michelin.

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