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Os ensinamentos da última entrevista do ‘Papa Vinhos’

por Filipe Silva em

Agitar, cheirar, provar, cuspir e tirar notas, este é um hábito de qualquer somellier. É justo afirmar que João Paulo Martins foi pioneiro nesta arte, que nasceu antes da crítica de vinhos existir. No passado domingo, e num mês em que fez 30 anos de carreira, o Papa dos Vinhos deu uma entrevista ao Observador,. A conversa foi longa, prolongou-se por mais de uma hora e meia: para facilitar-lhe o trabalho a Wine.pt decidiu selecionar algumas das afirmações mais marcantes e curiosas ao longo da entrevista. 

Sobre como tudo começou há 30 anos atrás

 “Lembro-me de vinhos do Dão engarrafados — ‘engarrafonados’ era o termo que se usava. Ia-se muito comprar às adegas cooperativas e aos produtores. Eu próprio comprei a um produtor na zona de Aveiras e depois engarrafei em casa, martelei as rolhas e coloquei as etiquetas com o ano da colheita”

“Para mim isto era um hobby. Comprava as garrafas, tirava os rótulos e colava-os em dossiers (antigamente, os rótulos saíam facilmente). Comprava o Jornal de Vinhos que saía uma vez por mês. Lia aquilo, babava-me a ler aquilo. Nunca pensei: Atenção, está aqui o meu futuro”

Sobre provar e as diferentes técnicas

Antigamente as pessoas não cheiravam os vinhos. Aquela ideia de beber o vinho de copo cheio, de penálti, como se dizia nas tascas, em que a pessoa segurava no copo com jeitinho para não entornar (se abanasse um bocadinho já saía fora)… a ideia era beber o vinho. Se era encorpado, se tinha álcool… eram essas as virtudes que o vinho apresentavam.

“Quando comecei nessa história de cuspir foi logo a provar 9 ou 10 vinhos, portanto, já sabia que não podia beber tudo. Se a pessoa fosse a beber tudo não passava do segundo vinho”

“Se for fazer uma prova de Barca Velha, cuspo o vinho todo e uma pessoa pensa: Este gajo não é normal tem aqui um vinho que é caríssimo e raro”

“Agarrava no copo, abria o olho e agitava o copo com o olho dentro do copo. Deu-me uma vontade de rir… Mais tarde, alguém explicou-me o eventual interesse técnico daquele gesto, que é ver se o vinho tem muito sulfuroso — se tiver, irrita a mucosa do olho. Essa foi sensacional, nunca tinha visto uma coisa assim.”

Sobre o crítico e quem aprova

“O crítico não se pode deixar levar na conversa do consumidor, tem de estar distante, assim como tem de estar distante dos produtores”

“Ou estou a escrever para o consumidor ou estou a escrever para prazer próprio, para me ver ao espelho — “Estás a ver? És um grande provador”

“Se eu vou dizer que aquele vinho cheira a uma banana que existe só em Madagáscar, que por acaso provei mas que mais ninguém no mundo provou, isso não faz de mim melhor provador, faz de mim um pateta”

“Ah e tal, não é o estilo. Vão-se lixar com o estilo. Se a casta está prevista na região, se cumpriu todas as formalidades prévias até chegar à Câmara de provadores, a Câmara de provadores só pode dizer se está bom ou não está bom. Não é ‘não gosto, não é o estilo, não se insere. Há muita gente que ainda trabalha assim”.

Sobre a reacção de quem recebe as críticas

“Cheguei a ser posto em tribunal por uma enóloga que não gostou de eu ter dito o que disse” – o artigo abria com o seguinte título: A arte de fazer mau vinho ainda não morreu

 “Houve uma grande empresa de vinhos em Portugal em que eu disse mal de um vinho branco deles, e eles não foram de modas e compraram 12 garrafas daquele vinho no mercado, cada uma comprada em seu supermercado e loja, com o ticket da caixa colado à garrafa. Mandaram-me as 12 garrafas para eu provar outra vez.”

Sobre o produtor

  “Se há coisa com que fico doente é quando vamos a um produtor, pensamos em fazer umas provas e ele diz: “Deste, deste e deste já não tenho nem uma única garrafa”

Sobre o consumidor

“Acho ótimo que as pessoas digam que não querem beber vinhos com sulfitos e, depois, sentam-se em frente à televisão a beber cervejas e a comer amendoins. Vão lá ver ao pacote de amendoins o que lá tem de sulfitos.”

“Normalmente o vinho de que mais gostamos é um vinho de relação com o momento, com as pessoas, com a ocasião”

Sobre o preço e a necessidade de combater a fraude

“Acho que um país, uma região, uma casta ou um produtor não ganha prestígio a vender vinhos baratos. Pode ganhar dinheiro, mas não ganha prestígio. Um produtor só passa a ser de referência quando o consumidor já compra à confiança mesmo sem conhecer o vinho. Um produtor só ganha esse prestígio se os vinhos forem subindo gradualmente de preço”

“Se a pessoa quer beber vinhos todos os dias ao almoço e ao jantar, tem muitos vinhos baratos. Hoje, os vinhos baratos são bons. No tempo em que comecei, os vinhos baratos eram miseráveis e, nesse aspeto, a renovação tecnológica das adegas, mesmo das adegas cooperativas que sobreviveram, veio fazer com que até os vinhos mais baratos sejam bons”

“O negócio das grandes superfícies precisava de mais supervisão. É como os bancos, têm de ter supervisão do Banco de Portugal. Não pode ser, não se pode partir do princípio que enganar o consumidor é uma boa prática de venda.”

Sobre mitos, modas e snobismo

“Não há natural… não há um vinho sem intervenção, porque um vinho sem intervenção não existe, transforma-se em vinagre. Portanto, tem de haver uma intervenção humana e isso são opções: se vindimo a 10 de agosto ou a 10 de setembro; se vindimo verde ou maduro. São tudo opções, não se pode dizer que é natural no sentido de que o vinho se faz por si. Não faz nada. Sou eu que vou decidir o que quero fazer do vinho”

“Lembro-me, por exemplo, do excesso de madeira nos vinhos brancos: vinhos que só cheiravam a tosta, que eram madeira, madeira, madeira. A pessoa que o provava não era capaz de dizer de que país provinha, nem sequer de que continente, nem a casta (…) Agora, a moda é para chumbar tudo o que tiver madeira, portanto, passámos para o radicalismo completamente oposto, ninguém está preocupado se a madeira está bem integrada, se liga bem com a fruta, se ajuda na complexidade do vinho.”

“Há snobismo e há um bocadinho de novo-riquismo, as pessoas que bebem determinado vinho só porque podem. Se eu disser que ontem à noite bebi Romanée-Conti isto quer dizer alguma coisa. (…) O vinho também pode servir para esse tipo de demonstração um pouco bacoca de exibicionismo e de poder económico.

Sobre o futuro

“Bebi uma única vez na vida um Vinho da Madeira de finais de século XVIII… tive a nítida sensação de que se passarem mais 100 anos o vinho vai estar igual. É a sensação de que aquilo não vai mudar nunca. Estes tipos de vinhos são mais ou menos eternos”

“Não se pode modificar o estilo do Vinho do Porto porque o consumidor não gosta de vinhos doces. Se formos por aí, vamos matar o Vinho do Porto. Há coisas que devemos mudar tendo em conta o que o consumidor gosta, há outras que são princípios”

“Já não vou estar cá para ver, mas espero que não sejamos muito massacrados com vinho chinês”  - sobre a globalização do vinho e a esperança de que o vinho chinês não inunde o mercado português no futuro

“Qualquer dia estão a plantar vinhas na Noruega. Qualquer dia o sul da Europa não vai conseguir produzir vinho porque é um deserto” – sobre o risco de as alterações climáticas poderem colocar em causa a capacidade de “manter da tradição das velhas regiões vitícolas” e alterarem tanto aquilo que se produz, como onde se produz

Sobre a alcunha preferida

“Preferia que me chamassem cheirista que Papa Vinhos”

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