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Vinho também é Charlie

por Filipe Silva em

No meio do choque provocado pelo ataque terrorista ao Charlie Hebdo, no passado dia 7 de Janeiro, o mundo soube do assassinato de 5 renomados cartoonistas franceses. O que poucos sabem, é que 3 desses cartoonistas estavam ligados à criação dos mais irreverentes e provocantes rótulos. E tal como o jornal satírico parisiense promete continuar, com o suporte internacional (fez 3 milhões de cópias após o atentado, quando a tiragem normal era 60 mil exemplares), também o bordalês Gérard Descrambe garante que continuará a etiquetar metade de cada vinho que engarrafa com caricaturas, por mais grotescas ou provocantes que elas sejam.

Com 65 anos de idade, há mais de 40 que este produtor de Bordéus encomenda aos cartoonistas do Charlie Hebdo e outros, o design dos seus rótulos. Do humor sexual explícito à representação de bebedeiras monumentais, o objetivo é “rir de tudo, expor o ridículo e misérias humanas”, refere o herdeiro do Château Barrail des Graves, em Saint-Emilion (não confundir o nome com a denominação de Graves). Ele próprio um cromo no conservador universo bordalês…

Contada na primeira pessoa, a história começa com Gérard a dizer ao pai que “nunca se sujeitaria a uma vida de treta”. Como seria de esperar, após vários empregos da treta em Paris, regressa à aldeia, nos anos 70, para se tornar “vigneron”. Já então, a exploração familiar era apontada a dedo pelos vizinhos de St. Sulpice de Faleyrens. Desde 1954, o pai de Gérard, fundador da associação Natureza e Progresso, abolira o uso de químicos e praticava cultivo orgânico.

Isto, numa época em que a palavra Bio não constava do léxico agrícola e produção orgânica, nos anos 70, era algo que só podia interessar a uma pandilha irreverente, como a que se juntara para formar o Charlie Hebdo. “As únicas pessoas que eu conhecia, que se interessavam por ecologia, estavam no jornal”, recorda Gérard. Daí a decisão de escrever ao diretor, Georges Bernier (vulgo, “Professeur Choron”), uma bela carta onde prometia afixar a nota de encomenda na latrina da adega, caso ele lhe comprasse vinho. O professor comprou o mais caro e Gérard, homem de palavra, afixou a encomenda no local prometido.



Foi o início de uma sólida amizade, apenas interrompida no passado dia 7. Após aquela primeira troca comercial, Reiser desenhou o rótulo para a colheita de 1972, Cavanna, Gébé e muitos outros se seguiram. Ano após ano, pelo menos 18 caricaturistas de primeira linha, contribuíram para uma coleção de mais de 50 rótulos-caricaturas. Entre eles, o editor chefe do Charlie, Stéphane Charbonnier (vulgo, Charb), Georges Wolinski e Bernard Verlhac (vulgo, Tignous), os 3 assassinados no passado dia 7. Todos amigos do vinho, que um dia estamparam a sua criatividade em rótulos. Em metade de cada vinho engarrafado por Gérard Descrambe, a outra metade leva o rótulo convencional bordalês.

Um aparte para eventuais interessados, não será fácil encontrar este Saint-Emilion, pois Gérard acabou por se desfazer da maioria da parcelas que compunham o Chateau Barrail des Graves. Mas continua a produzir um genérico Bordeaux tinto e clarete, à base de Cabernet Franc e Merlot, sob o nome Château Renaissance. Um vinho bem distribuído e fácil de encontrar nas lojas Bio, em França, por 6 ou 7 euros a garrafa.

Fonte: Wine-Blog "La Contre Etiquette"
Os rótulos de Gérard Descrambe

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