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Morreu o Douro. Viva o Douro!
O assunto ainda é tema de conversa, e de tristeza, nas dezenas de aldeias que construiram a paisagem Património da Humanidade. De Alijó a Torre de Moncorvo, aldeias que no novo século já perderam quase 20 mil habitantes (Censos 2011). Ficando com um dos índices de envelhecimento mais elevados do país e, porque é de pessoas concretas que se trata, com outros tantos produtores que na última década e meia perderam 60% do seu rendimento. Bastante mais até, se contabilizarmos outros fatores, além do simples preço da pipa de Porto. Gente cuja única alternativa ao rendimento que a Casa do Douro garantia é um universo de cooperativas que acumulam um passivo de 270 milhões de euros.
Extinta a Casa do Douro, a associação que a substituir não terá natureza pública nem a inscrição obrigatória de toda essa gente. É pois esse povo, milhares de pequenos viticultores e respetivas famílias, que fica sem qualquer representação na tomada de decisões de um sector longe dos seus melhores dias. Se já se sentiam ignorados pelo poder político, entregues aos desígnios das grandes casas, imagine-se como se sentem perante a lápide da organização, criada pelo Estado Novo para os fortalecer. Para não falar da pesada herança que, ninguém duvide, serão eles a expiar: uma dívida de 167 milhões de euros! Sim, porque o stock de 9 milhões de litros de Porto (nove) passa para o Estado. Esse mesmo estado que os deixou sem representação.
Na verdade, o governo tentou aparentemente evitar esse vazio de representação, concedendo à última direção da Casa do Douro a possibilidade de renomear corpos dirigentes, que se encarregariam depois de elaborar os estatutos de nova associação. Mas, para isso, tinham um prazo de 20 dias, que se esgotou sem passagem de testemunho. Em duas tentativas, o Conselho Regional de Viticultores, espécie de assembleia magna do Douro, composto por 125 membros, não conseguiu renuir conselheiros em número suficiente.
Falhada essa meta, podiam ter convocado eleições, mas depressa concluíram que não havia tempo. Pelo menos, antes do dia 31 de Dezembro. Claro está, na voragem do processo, com a indústria a clamar sobre o destino do stock, poucos ouviram António Januário, um diretor, dizer que “os prazos impostos pelo Governo eram inexequíveis”… E se ouviram, preferiram encolher os ombros. O Ministério da Agricultura comentou apenas que a impossibilidade do Conselho de Viticultores conseguir quorum era, só por si, elucidativa. Diga-se em abono da verdade, comentário com boa dose de razão.
Como razão tem o Secretário de Estado da Agricultura, Diogo Albuquerque, quando refere que a questão da dívida e da paralisia institucional da Casa do Douro, tinham de acabar um dia. De facto, há 20 anos que o dossier se arrasta, de ministro em ministro. Problema é que, essa razão, pouco ou nada tem a ver com quem mais sofre as consequências. Como o universo de pequenos produtores pouco ou nada teve a ver com a ruinosa gestão dos anos 90, quando a Casa do Douro achou que podia competir com os exportadores, adquirindo enorme volumes de vinho para os quais teve de se financiar.
Que se saiba, não houve qualquer consulta por aldeias e vilas, quando a organização decidiu comprar 40% da Real Companhia Velha por 9,6 milhões de contos (cerca de 50 milhões de euros a valores atuais). Um dos negócios mais polémicos da região. E dos mais ruinosos: após anos de disputas jurídicas, nunca a Casa do Douro nomeou administrador na Real Companhia nem recebeu qualquer dividendo! Claro está, a culpa ficou solteira… na prática, quem ficou para a expiar é o tal universo empobrecido, de milhares de pequenos viticultores inscritos na extinta Casa do Douro.
Feridas passadas que contribuem para a desconfiança atual e receio do futuro. Ninguém sabe ao certo como será. A associação que deve renascer das cinzas da Casa do Douro, podendo usar o seu nome e receber parte do seu património, será escolhida por concurso. Os critérios da escolha serão definidos por portaria, com o Governo a garantir uma série de benefícios ao vencedor. Para que não faltem interessados. Além de ficar com a sede, historicamente património dos lavradores, o vencedor terá 6 lugares no Conselho Interprofissional, poderá receber como quotas as taxas pagas pelos produtores ao IVDP e ficará ainda com os bens remanescentes ao processo de liquidação da dívida. É que, além do stock de vinho do Porto para pagar a dívida ao Estado, a Casa do Douro detém vários armazéns na Régua e edifícios em diversas loacalidades. Sem esquecer a mencionada participação na Real Companhia Velha.
As regras do concurso e a criação de uma associação privada a partir do zero, serão assim os próximos alvos do interesse regional, os motivos para o Douro curar a ressaca e regressar à vida ativa. Individualista, mas participativo e combativo como sempre, quando está em jogo a sua sobrevivência, o seu interesse maior: o vinho! Porque mesmo envelhecido, o Douro é uma imensa aldeia, onde todos sabem quem é quem. E ali não é fácil, seja quem for, preencher vazios sem legitimidade para isso. As confederações que reinam no panorama agrícola, CAP e CNA que o digam…
De resto, na incerteza do presente sobram parecenças com o difícil cenário duriense entre 1929 e 1932: crise internacional, estagnação das exportações, degradação dos preços, falta de escoamento na produção e falta de estruturas de controlo (tanto na produção como no comércio). E acabou por se resolver. Foi essa frágil situação do sector, no início dos anos 30, com uma constante desvalorização do produto e das propriedades, que levou à criação da… Casa do Douro. Hoje como então “morreu o Douro. Viva o Douro”!