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Algo aconteceu há 10 milhões de anos

por Filipe Silva em

A arqueologia datou os primeiros vestígios de produção de uma bebida fermentada, com uvas, em 7000 A.C. (na China). Mas, os cientistas há muito teorizavam que essa sede devia remontar muito atrás, à pré-história, quando os nossos antepassados provaram algum fruto fermentado. E apreciaram. Tanto o sabor, como muito provavelmente o efeito subsequente. Passe a expressão, a vulgar bebedeira.

Agora, um estudo dirigido pelo biólogo Matthew Carrigan, da Florida, e publicado numa prestigiada revista científica norte-americana (Proceedings of the National Academy of Sciences) vem demonstrar que herdamos essa tolerância aos efeitos do álcool dos primatas que desenvolveram a capacidade de o metabolizar, de forma eficiente. Há cerca de 10 milhões de anos!

Como chegar aí? A paleogenética recupera proteínas ancestrais de organismos agora extintos para, em laboratório, testar e reconstruir os modelos funcionais dessas proteínas. Baseando-se na História natural e nos princípios evolucionistas de Darwin. No caso do Dr. Carrigan e da sua equipa, explorando o facto de outros primatas além dos humanos possuírem o enzima necessário à metabolização do etanol. Por exemplo, os gorilas e chimpanzés. O que permitiu reconstruir a história desse enzima, o Álcool Desidrogenase Classe 4 (ADH4), usando os genes de 28 espécies de mamíferos, entre eles 17 primatas.

Armados dessa informação, recuaram cerca de 70 milhões de anos na evolução dos primatas, para perceber as mutações do ADH4 ao longo do tempo e quando cada espécie divergia das restantes. Depois testaram os vários genes ADH4, das diferentes espécies, para medir a eficiência dos respetivos enzimas. “Encontramos uma mutação no gene, na linha de evolução dos primatas, por volta de 10 milhões de anos atrás. Mutação que resultou numa versão muito mais eficiente do enzima”, explica o Dr. Carrigan. Versão capaz de metabolizar o álcool de forma 40 vezes mais eficiente que os primatas anteriores, conclui o estudo. Em linguagem corrente, esses antepassados desenvolveram muito maior tolerância ao efeito do álcool, leia-se, à vulgar bebedeira.

Os cientistas estimam que essa mudança tenha ocorrido quando os nossos ancestrais antepassados desceram das árvores e se adaptaram à vida no solo. A mutação seria decerto vantajosa para primatas habitando no meio onde era mais frequente a fruta fermentada. Indo ao encontro da dúvida “darwinista”, vantagens concretas de processar melhor o etanol? Uma das hipóteses para o sucesso da nova versão do ADH4, terá sido o papel que desempenhou na sobrevivência dos indivíduos que o possuíam: sendo mais “resistentes à bebida”, estariam menos expostos à intoxicação etílica e logo, mais aptos a defenderem-se. Proporcionava também a capacidade de ingerir fruta que os outros animais não toleravam. Ou seja, uma vantagem na busca de recursos.

Seja como for, a descoberta sugere o incremento da dose de álcool na dieta dos hominídeos, durante os primeiros passos de uma vida mais terrena. Porque, regra geral, a fruta apanhada no solo apresenta uma concentração muito mais elevada de mostos fermentados, e por tabela de etanol, do que uma fruta similar ainda na árvore. Tudo indica pois, ter sido nessa altura que os nossos antepassados ficaram expostos, e se adaptaram, a uma dieta regada com álcool.


PNAS

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