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Amores com arrufos

por Filipe Silva em

Se existem produtos que alimentam o romance, não haverá par tão consensual, com uma imagem tão prazenteira e poderosa de fruição sensorial. Ambos, vinho e chocolate, evidenciam tal carácter que detêm uma categoria à parte, um brilho próprio. Seja à mesa ou na cozinha. Se a isto juntarmos tempos difíceis, em que diamantes e colares de pérolas estão fora de causa, quem ama encontra no vinho e numa caixa de bombons a oferta mais amorosa. E viável…

Claro está, o cupido está atento e por altura do Dia dos Namorados, o marketing dispara setas em todas as direções: ele é branco, tinto, doce, com borbulhas… O importante é que a oferta corresponda à procura. Resultado, os casamenteiros de ocasião entusiasmam-se e dão à estampa as combinações mais absurdas. Para não dizer disparatadas! Na verdade, se há tema onde se escrevem asneiras com desfaçatez, imprensa especializada incluída, é na relação do vinho com o chocolate. Ou vice-versa.

Aliás, por partes, primeiro as damas, ou o que mais lhes interessa… Hoje, não é preciso muita imaginação para ir além da caixa em forma de coração, embrulhada em celofane vermelho. O mais simplório amante sabe que há todo um arraial de luxuosos chocolates artesanais, para expressar a sua paixão. Desde que seja artesanal. Como o pão ou o queijo, a tendência do fabrico próprio, o “glamour” do artesanal chegou ao chocolate. Distingue-se do chocolate comercial pela atenção dos produtores ao mais ínfimo detalhe, desde a escolha de ingredientes de alta qualidade ao esmero na apresentação.

Habituados ao sabor das ordinárias tabletes comerciais, já todos nos surpreendemos algum dia com a delicada e sensual experiência de um bombom de fabrico manual, sem aromatizantes e conservantes. Acrescem as formas criativas e a artística decoração que esses chocolates artesanais, regra geral, apresentam. Capazes de seduzir o olhar como a boca.

Tratando-se do mais famoso derivado do cacau (o “cacahualt” cultivado pelos Astecas, no México, e os Maias, na América Central), os produtores artesanais escolhem as sementes de diferentes proveniências geográficas, cada qual com o seu aroma e perfil. O cacaueiro é uma planta que adora climas quentes e húmidos, com densas florestas tropicais onde se protege da luz. Os principais países produtores são a Costa do Marfim, o Gana, a Indonésia, Camarões, o Brasil e a Malásia. Mas alguns pequenos países produtores possuem as sementes mais preciosas. A saber: Venezuela, Madagáscar, Equador, Jamaica e Trinidad e Tobago.

Depois, e um pouco à semelhança das castas no vinho, existem três tipos de cacaus: o Forastero, o Criollo e o Trinitário, com perfis muito próprios e distintos. Com variações consoante a zona de produção e o método produtivo. Mais uma vez, como o vinho. Aliás, também existem centenas de diferentes híbridos.

O Forastero é originário da Amazónia. Apelidada “Robusta do cacau”, devido à resistência e ao elevado teor de taninos, é a maior variedade em África e a mais cultivada do mundo (85%)! Porém, se os “forastero” africano dá as colheitas vulgares e é o mais utilizado pela indústria, existem “forasteros” finos como o Arriba, produzido no Equador e em Trinidad, ou ainda o Maranhão do Brasil e da Venezuela. O Criollo é o cacau original, dos Maias, no México. Fortemente perfumado, tem um sabor subtil e aromático. Entre os “criollos” mais famosos, estão o Chuao, o Puerto Caballo e o Porcelana da Venezuela, o Sambirano de Madagáscar e o Criollo da Indonésia. A fragilidade explica a sua raridade – representa menos de 5% da produção mundial e, por isso, quase nunca é usado puro.

Por último, o Trinitário é uma espécie híbrida, resultado do cruzamento do Criollo com o Forastero. Do primeiro herdou o requinte do perfume; o segundo conferiu-lhe robustez. Tendo surgido em Trinidad, é também cultivado na América Latina, no Sri Lanka e na Indonésia. Mas o mais valorizado continua a ser o de Trinidad e Tobago. Nota vínica, este Trinitário é conhecido como “Médoc do cacau”, por causa do gosto frutado, notas terrosas e de especiarias, que permanece na boca. O Trinitário representa os restantes 10% da produção mundial.

Mas atenção, o sabor das pequenas sementes que se encontram no interior do fruto do cacaueiro, uns caroços alongados e amargos, adstringentes, nada tem a ver com o produto final. A produção e transformação sofre vários processos, onde a torrefação é das mais importantes, pois é partir daqui que se desenvolvem os aromas. Depois é ainda triturado e refinado, de forma a obter a pasta de cacau, que conserva toda a matéria gorda original. A partir daqui escolhe-se o caminho final. A chamada homogeneização do chocolate, é o “toque” de cada fabricante consoante as fórmulas de ingredientes utilizadas para favorecer determinado sabor.

Desta escolha e da mistura das pastas de cacau obtidas de diversas colheitas, depende o sabor e qualidade do chocolate. Apesar de alguns entendidos defenderem as origens puras (sementes de uma só origem), o chocolate, tal como o vinho, é frequentemente resultado de misturas subtis, como se de um lote se tratasse. Igualmente dependente do ano e do conjunto de fatores naturais, como o “terroir” para o vinho.

Nesta altura, já sabemos um pouco mais sobre o parceiro da nossa relação, a delícia que liberta endorfinas. A esse conhecimento, some o “glamour” da imagem e da forma. Além do ingrediente de base, o impacto visual é a primeira nota romântica. Para a prolongar no tempo, leia-se no Dia dos Namorados e no coração da pessoa amada, surge então o vinho. O mais inebriante néctar para complementar o mais doce presente. Sinónimo de enormes arrufos, de harmonização tão pouco pacífica quanto estimulante, pelos resultados altamente surpreendentes que produz.

Comecemos por eliminar relações destinadas ao fracasso. A tendência amarga do chocolate, quiçá demasiado impositiva, coloca sérias dificuldades aos vinhos, especialmente aos mais macios, com a suculência e gordura da manteiga de cacau muitas vezes só correspondidas pela generosidade alcoólica. Por essa via, uma bebida espirituosa faria melhor. E as dificuldades agravam-se com a duração de sabor do chocolate. Na verdade, anula um tinto macio como, na maioria das vezes, um vinho encorpado anula delicadezas gastronómicas. Com chocolate, convém lembrar, delicado é o vinho.

Assim, nos tintos, para sermos sinceros, a maioria das relações será feita de arrufos. Embora sobrem algumas, poucas, possibilidades de namoro feliz. É que tanto o vinho tinto como o chocolate dispõem de uma particularidade que os torna à partida incompatíveis: a riqueza em polifenóis. Traduzindo isto na boca, sensações vegetais e amargas que oferecem mais confronto do que encaixe. E sabemos como numa relação podem chocar feitios iguais…

Para combinar com chocolate, um tinto terá de ser bastante encorpado, com envolvência e muita fruta no chamado “meio de boca”. E ainda assim, convém que o chocolate seja equilibrado, na quantidade de manteiga de cacau, leite e açúcar. Por exemplo, não estamos a ver um tinto seco, seja ele qual fôr, capaz de se entender com um chocolate negro, tão apreciado pelos puristas do chocolate…

Voltando ao princípio da delicadeza e de quem é quem na relação, os espumantes (tantas vezes sugeridos inclusive por críticos), normalmente não funcionam bem. A doçura geral do chocolate torna o espumante, especialmente o seco, muito curto, metálico e magro. Mesmo os meio-secos ou doces não apresentam argumentos para suportar o chocolate.

Também os vinhos de uvas brancas, mais ácidas, têm idêntico problema de relacionamento. Haverá alguma possibilidade, eventualmente, com chocolates brancos. Nem os Late Harvest se entendem bem com o chocolate. Poderá sim considerar-se a harmonização de um Colheita Tardia com creme brullée de chocolate, ou com simples biscoitos de chocolate. Idem aspas para os populares moscatéis jovens, embora o maior teor alcoólico lhes possa ambicionar melhor sorte. Melhor, por comparação, porque o resultado nunca será brilhante.

Por exclusão de partes, já terá adivinhado, sobram os vinhos fortificados. Pois é, são mesmo os generosos aqueles que melhores combinações proporcionam com chocolate. Desde os vinhos do Porto (em particular Reserva e Tawny), a moscatéis mais velhos e Madeira, a maridagem é possível. Nos Porto Vintage, recomendam-se vinhos já com alguma evolução, dado que os Vintage novos poderão motivar um encontro de caracteres demasiado agressivos.

Para quem goste de saltar fronteiras, aplica-se o mesmo raciocínio. Por exemplo, os famosos Sauternes, brancos doces, só mais velhos e evoluídos poderão ter alguma hipótese. Muito mais provável será o bom relacionamento com um Banyuls, tinto fortificado do Languedoc-Roussillon (Sul de França), elaborado à base de Grenache, ou ainda o conhecido Mas Amiel, da vizinha denominação de Maury (elaborado como o nosso Porto, com adição de aguardente a meio da fermentação). A lista estende-se ao Vin Santo italiano, ao siciliano Marsala ou aos nossos vizinhos de Jerez. Aliás, entre os tintos doces com mais extração, para alcançar grandes combinações, um particular favorito nosso é o assombrosamente doce e viscoso Pedro Ximénez (PX). De resto, excluindo os vinhos de Jerez mais finos, como um Manzanilla, outros nobres andaluzes, como o Oloroso e o Cream Sherry, prestam-se a boas ligações.

Resumindo, vinho e chocolate, duas das maiores maravilhas gastronómicas à face da terra podem ser uma das combinações mais difíceis. Ambos prazenteiros, podem ser uma delícia juntos mas apenas evitando arrufos que redundam em separação litigiosa. O pior de todos, chocolate doce com vinho taninoso, só torna o vinho mais amargo. Há que equilibrar doce com doce e a regra pode bem ser: escolha vinho tão doce como o… chocolate!

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