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Austrália: não há fogo sem fumo…
Um pouco à semelhança do que acontece na bacia do Mediterrâneo no Verão, altas temperaturas, ventos fortes e queda de raios deram início à época de fogos no Sul da Austrália, em meados de Dezembro. Até ao momento, o vinho australiano contabiliza 2 hectares de videiras queimadas no vale de Eden, região de Barossa, onde um produtor (Hutton Vale Farm) calcula que metade das vinhas foram atingidas. Quiçá mais conhecida na Europa, ali perto, a adega Henschke (Henschke Wines) teve de ser evacuada face à proximidade das chamas. Uma repetição do ano passado, quando outra propriedade da adega foi cercada por um gigantesco incêndio.
A principal preocupação do produtor, Stephen Henschke, é saber até que ponto o fumo, a nuvem de cinzas, pode contaminar a colheita de 2015. Ironia, os ventos fortes que propagaram as chamas podem ser a sua salvação, dispersando a nuvem de fumo que pairava sobre a vinha de forma igualmente rápida. Receio partilhado por uma das grandes marcas australianas, a Jacobs Creek, cujas propriedades na região de Adelaide assistiram ao pior incêndio desde 1983. O enólogo chefe da adega, Bernard Hickin, conta que a dimensão da nuvem de fumo negro e branco era impressionante, “parecia um vulcão!” Porém, só mais perto da vindima será possível saber até que ponto a fumarada afetou a colheita. O otimismo do enólogo reside no facto das cinzas terem atingido a fruta ainda verde, antes do chamado “pintor”, reduzindo os riscos de absorção.
Esse incêndio em Adelaide (Adelaide Hills) destruiu metade das vinhas da Kersbrook Wines, que viu o edifício da adega escapar por pouco. Mas também aí, a nuvem de fumo é uma ameaça bem mais relevante do que as chamas. Os marcadores químicos do fumo são o Guaiacol, ou 4-ethylguaiacol, composto fenólico (que se traduz num aroma prejudicial a químico) que é naturalmente produzido, mas em pequenas quantidades, por castas como a Cabernet Sauvignon e a Syrah. A exposição a madeiras tostadas pode também aumentar a sua presença no vinho.
No caso da Austrália e atendendo às variedades ali cultivadas, é fácil perceber que o risco está presente mesmo sem nuvens de fumo e tanto maior a frustração dos produtores quanto é impossível determinar o nível de contaminação da fruta. Muitas vezes, só se revela após a fermentação e nem a chuva nem a rega evitam o problema. Maior no caso dos tintos, devido à necessária maceração da película das uvas, do que nos vinhos brancos. Embora nem a película garanta que o composto não chegue ao sumo, portanto não há, à partida, fruta imune ao risco de contaminação.
Isto não é nada de novo, é sim um tema que a indústria local prefere não abordar e sempre que o faz, é tentando menosprezar o problema. O que contradiz a dimensão que os fogos de ignição natural atingem na Austrália, quando comparados, por exemplo, com a dimensão média dos incêndios na bacia do Mediterrâneo. O fogo é um elemento primordial do ecossistema australiano há 100 mil anos, e a chegada do homem à Oceania, entre 60 mil e 40 mil A.C. só veio piorar as coisas. Não por acaso, no convés do Endeavour, enquanto avistava as gigantescas colunas de fumo e o crepitar das chamas no horizonte, James Cook apelidou a Austrália “the continent of smoke”. Um péssimo conhecido do vinho.